Não raro fazemos ouvidos moucos de alguns princípios constitucionais que em uma primeira e superficial análise nos parecem, digamos, pouco acessíveis ou inalcançáveis do ponto de vista prático. Por qual razão iríamos considerar ilegal – imprestável – uma prova obtida por meio de interceptação telefônica autorizada judicialmente para outro fim e em desfavor de outras pessoas? Por que esse apego à forma e não ao conteúdo?
A evolução de toda e qualquer sociedade passa primeiro pela educação de seu povo, o que ainda nos parece ser um óbice ao real entendimento de que os fins não podem justificar os meios. O foro especial por prerrogativa de função é infelizmente retratado como um equivocado privilégio e, pior, “garantidor” de eventual impunidade. Nada mais impreciso. Primeiro cumpre esclarecer que ele nada tem de “privilégio” e o uso dessa palavra para identificá-lo parece-me equivocado.
Quem tem para si tal foro, se vê, na maioria das vezes, diminuído em sua capacidade defensiva, visto que lhe são retiradas instâncias recursais, noutras palavras, menos órgãos judiciais irão analisar o caso e em algumas hipóteses o julgamento ocorre tão só perante a Corte Maior. Contudo, sua essência pode ser aferida quando se avalia seu papel político, o de assegurar um dos vetores de independência entre os poderes do Estado. No caso, ao especificar um foro para o cargo de parlamentares – e não para a figura física deles –, há a criação de uma garantia de que essas pessoas que ocupam momentaneamente tais funções terão maior independência, mecanismo que integra os famosos “checks and balances”, tão reverenciados por Montesquieau e James Madison, entre outros.
Ainda que se possam fazer grandes delongas sobre a relevância do foro especial por prerrogativa de função no modelo estatal adotado pelo legislador constituinte de 1988, o enfoque que se pretende dar é baseado na seguinte questão: de grande relevância no resguardo do equilíbrio entre o poder legislativo e judiciário, o foro especial, mais do que isso, é uma garantia individual atribuída a deputados e senadores, nitidamente insculpida no artigo 53, parágrafo 1º, da Constituição Federal.
Conforme todos deveríamos saber, a atual Carta Magna deu grande relevância aos direitos e garantias individuais, ante a experiência vivida precipuamente no Brasil durante o Século XX. Cabe citar os regimes de exceção que vigoraram sob o território nacional de 1937 a 1945 e de 1964 a 1985, não sendo estranho, portanto, o afã legislador em garantir de forma clara e perpétua para um povo – que se liberta de 20 anos de amordaçamento ditatorial – o que lhe é mais valioso: os seus direitos.
A evidência desse anseio do legislador constituinte pode ser constatada no artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, que traz consigo as limitações materiais a possibilidade de emendas, as famosas Cláusulas Pétreas, como a contida no inciso IV do referido dispositivo, o qual versa sobre os direitos e garantias individuais, e outra, também de grande relevância, descrita no inciso 3º, discorrendo sobre a já mencionada separação de poderes. Ninguém pode ser o Pai, o Filho e o Espírito Santo ao mesmo tempo.
Assim, resta indagar, ainda que retoricamente: Se as Emendas Constitucionais, expressão máxima de renovação democrática do texto constitucional, estão impossibilitadas de alcançar essas limitações, o que faz pensar, ainda que minimamente, que qualquer outra forma de manifestação do poder estatal poderia alcançá-las? A única conclusão que resta é que ao admitirmos a interceptação de conversas telefônicas de pessoas com foro especial por prerrogativa de função, sem a autorização do juízo competente para tanto, não se está incorrendo em uma “mera” ilegalidade, mas sim em uma inconstitucionalidade.
E como disse o pastor Martin Niemöller: “Quando os nazistas levaram os comunistas, calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse”.